Patrícia Lupion Torres: Entrevista com a criadora do Programa Agrinho

Há mais de duas décadas, o Programa Agrinho se tornou referência nacional em educação, responsabilidade social e transformação. Fruto da parceria entre o Sistema FAEP/SENAR-PR, o Governo do Estado, prefeituras, empresas e instituições públicas e privadas, o programa é reconhecido por levar às escolas de todo o Paraná uma proposta pedagógica inovadora, baseada na inter e transdisciplinaridade, na pesquisa e na conexão com temas fundamentais da atualidade.

Por trás desse projeto de impacto gigantesco,que mobiliza anualmente cerca de 800 mil estudantes e 50 mil professores da educação infantil, ensino fundamental e educação especial em todos os municípios do Estado, está a professora e doutora em Educação Patrícia Lupion Torres, idealizadora do Agrinho.
Em entrevista exclusiva a Revista SindiRural, ela compartilha os bastidores da criação do programa, os desafios enfrentados na educação paranaense, a construção de uma metodologia transformadora e reflete sobre como a educação, quando aliada ao desenvolvimento social e à valorização do campo, torna-se uma poderosa ferramenta de mudança para toda a sociedade.
1 – Doutora Patrícia, o que havia de mais urgente na realidade educacional do meio rural quando o SENAR-PR e o Programa Agrinho surgiram? Que lacunas educacionais a senhora sentiu que precisam ser enfrentadas?
Naquele momento, estávamos implantando no país uma nova LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) e a discussão sobre os temas transversais era tema recorrente nos meios educacionais. Em decorrência do cargo que eu ocupava na Universidade fui convidada a participar da análise da proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Os Parâmetros Curriculares Nacionais propunham trabalhar de forma transversal temas de relevância social. Era preciso formar os professores e incluir essas temáticas nos currículos. Assim nasce o Agrinho, trazendo materiais paradidáticos que levavam para a escola de maneira lúdica informações sobre essas temáticas e permitia que elas fossem trabalhadas por professores de qualquer disciplina.
2 – Como foi o processo de idealização e estruturação do Agrinho? Como a senhora equilibrou todas as necessidades pedagógicas que precisam ser consideradas na educação com os objetivos institucionais do Sistema FAEP/SENAR-PR?
O SENAR tem no seu escopo de trabalho a Promoção Social e o nosso presidente Ágide definiu naquele momento que iríamos investir nossos esforços e recursos em Educação. Assim foram desenvolvidos vários programas, entre os quais se destacaram: a Escola Aberta, o Renascer e o Agrinho. Desta forma melhorávamos o nível educacional da área rural ao mesmo tempo que o fazíamos de forma contextualizada a realidade rural.
3 – Em termos de metodologia, o Agrinho é hoje referência nacional. Como a pesquisa acadêmica e os estudos em educação foram aplicados diretamente na formulação dos conteúdos e abordagens do programa?
A seleção das temáticas e dos autores passa por um criterioso processo de escolha baseado em pesquisas de campo e levantamento dos índices métricos de impacto dos autores e de suas publicações. Com essa seleção rigorosa sempre lançamos temas inovadores e pertinentes para todas as escolas.
4 – A senhora já explicou que o Programa Agrinho não foi desenvolvido apenas para as crianças do campo, e sim para todas as crianças nas escolas urbanas. Como essa visão rompe com a ideia antiga de que a educação rural deveria ser segmentada?
O Agrinho começou sua jornada apenas nas escolas rurais, mas logo na sequência entendemos que todo público escolar está ou poderá estar ligado em algum momento da sua vida com a área rural. Assim temos que trabalhar com todos os públicos se queremos investir em educação. A escola seja ela urbana ou rural não pode trabalhar com materiais culturalmente empobrecidos. É necessário abrir horizontes, estimular a criatividade, desenvolver habilidades diversas.
5 – Quais foram os maiores desafios enfrentados para que o Agrinho ganhasse adesão em todo o Paraná? Houve resistência em algum momento? Como foi vencida?
É natural que, em um programa de grande escala como o Agrinho, houvesse alguma resistência em diferentes momentos. Assim, para que o Programa Agrinho ganhasse adesão em todo o Paraná, alguns dos maiores desafios enfrentados incluíram:
- Mobilização e engajamento: Convencer professores, diretores, alunos e pais a participar ativamente do programa exigiu um esforço contínuo de comunicação e sensibilização.
- Logística e distribuição de materiais: Fazer com que os materiais didáticos e informativos chegassem a todas as escolas do estado, representou um desafio logístico considerável.
- Capacitação de professores: Garantir que os professores estivessem preparados para utilizar a metodologia do Agrinho em sala de aula demandou um amplo programa de capacitação.
- Informações falsas: Em alguns casos, houve um ceticismo inicial sobre a relevância do Programa em decorrência de informações falsas e também de preconceito pelo desconhecimento das temáticas ligadas ao Agro.
A resistência foi sendo vencida por meio de diversas estratégias, como:
- Comunicação clara e eficaz: Explicar os objetivos, benefícios e a metodologia do Agrinho de forma clara e consistente para todos os públicos envolvidos.
- Parcerias estratégicas: Estabelecer parcerias com a Secretaria de Estado da Educação (Seed), Núcleos Regionais de Educação (NREs) e sindicatos rurais para facilitar a disseminação e o apoio ao programa.
- Capacitação e suporte contínuos: Oferecer formação de qualidade aos professores, fornecendo materiais didáticos relevantes e suporte pedagógico para a implementação do programa.
- Adaptação e evolução do programa: Ao longo dos anos, o Agrinho demonstrou capacidade de se adaptar a diferentes contextos e incorporar novas temáticas relevantes para a sociedade, como sustentabilidade e a conexão entre o campo e a cidade.
- Resultados visíveis: O sucesso de projetos desenvolvidos no âmbito do Agrinho e o impacto positivo na formação dos alunos contribuíram para aumentar a credibilidade e a adesão ao programa.
Em resumo, a adesão do Agrinho em todo o Paraná foi construída gradualmente, superando desafios logísticos e pedagógicos, e vencendo resistências através da comunicação, parcerias, capacitação e da demonstração dos resultados positivos do programa para a educação e a sociedade paranaense.
6 – Na sua visão, que tipo de impacto o Programa Agrinho tem causado na autoestima das crianças do campo e na forma como elas enxergam seu próprio futuro?
Na minha visão, o Programa Agrinho tem causado um impacto positivo na autoestima das crianças do campo e na forma como elas enxergam seu próprio futuro. Esse impacto se manifesta na valorização da identidade rural, no reconhecimento da importância do seu meio e na quebra de estereótipos preconceituosos. O Programa ainda promove o protagonismo e participação, o desenvolvimento de conhecimentos e habilidades, o sentimento de pertencimento, a ampliação de horizontes ao mesmo tempo que mostra novas perspectivas para o futuro. Em suma, o Programa Agrinho atua como um importante agente de transformação na vida das crianças do campo. Ele eleva sua autoestima ao valorizar sua identidade e seu ambiente, e amplia sua visão de futuro ao apresentar novas perspectivas e oportunidades dentro e fora do meio rural. Ao se sentirem reconhecidas, capazes e com um horizonte de possibilidades, essas crianças tendem a construir um futuro com mais confiança e otimismo.
7 – Em que medida a educação, aliada à capacitação técnica, é hoje um ativo estratégico para o futuro do agro brasileiro?
A educação e a capacitação técnica deixaram de ser apenas um complemento e se tornaram um pilar estratégico para o futuro do agro brasileiro. Elas são essenciais para aumentar a produtividade de forma sustentável, inovar, competir no mercado global, garantir a sucessão rural e atender às demandas da sociedade por alimentos de qualidade e produzidos de forma responsável. Investir na formação de capital humano no setor agropecuário é, portanto, investir no futuro da economia brasileira e na segurança alimentar global.
8 – Como a senhora enxerga o papel da mulher no campo quando o assunto é educação? A Comissão Feminina do Sindicato Rural de Cascavel tem puxado esse protagonismo. Que mudanças mais lhe emocionam nesse movimento?
Na minha visão, o papel da mulher no campo, quando o assunto é educação, é fundamental e multifacetado. Historicamente, as mulheres sempre foram as principais responsáveis pela educação informal dentro da família, transmitindo conhecimentos, valores e tradições para as novas gerações. E também nas escolas tem papel fundamental, visto que a grande maioria dos docentes é do sexo feminino. No entanto, seu papel na educação é muitas vezes menos reconhecido.
A iniciativa da Comissão Feminina do Sindicato Rural de Cascavel em puxar esse protagonismo é extremamente significativa. Enxergo essa atuação como um movimento de reconhecimento e empoderamento, que busca trazer a voz e a perspectiva feminina para a vanguarda das discussões e ações educacionais no meio rural.
Me emociona ver a Comissão Feminina colocar a educação como pauta central pois demonstra um reconhecimento de que o acesso ao conhecimento e à capacitação é crucial para o desenvolvimento pessoal e profissional das mulheres rurais, permitindo que elas superem barreiras e alcancem seu potencial máximo. A iniciativa da Comissão encoraja as mulheres a assumirem papéis de liderança na promoção da educação em suas comunidades. Isso não apenas inspira outras mulheres e meninas, mas também enriquece o debate educacional com diferentes perspectivas e experiências.
É emocionante testemunhar o movimento em Cascavel, pois ele representa um passo importante para romper com padrões históricos de não reconhecimento e para construir um futuro em que as mulheres do campo tenham um papel central em decisões no que tange a educação e no desenvolvimento de suas comunidades.
9 – Em tempos de avanço tecnológico e transformação digital, como o Agrinho tem se adaptado às novas formas de ensinar e aprender? O que está sendo planejado para o futuro do programa?
O programa aborda em seus materiais e projetos metodologias inovadoras e temas ligados à inclusão da tecnologia no cotidiano. Reconhecendo que a transformação digital exige novas abordagens pedagógicas, o programa tem investido na formação de professores para que utilizem a tecnologia como ferramenta de ensino. Isso inclui evidenciar no material dos professores como integrar recursos digitais, promover a pesquisa online e desenvolver projetos que envolvam a aplicação de tecnologias. Para o futuro, o Agrinho provavelmente continuará a aprofundar sua integração com a transformação digital e as novas metodologias de ensino. A visão é que o Agrinho continue a ser um programa dinâmico e relevante, que prepare as futuras gerações do campo e da cidade para atuar em um mundo cada vez mais conectado e impulsionado pela tecnologia, formando cidadãos conscientes e inovadores.
10. Como professora com três décadas de experiência à frente do programa e do debate educacional no meio rural, qual sua opinião sobre os benefícios pedagógicos que os professores ganham ao aplicarem e se capacitarem para o Programa Agrinho?
Acredito que o Agrinho oferece uma rica oportunidade de desenvolvimento profissional que vai muito além de um simples projeto complementar desenvolvido em escolas, visto que amplia o repertório pedagógico e metodológico, conecta o conteúdo escolar à realidade dos alunos, desenvolve o pensamento crítico, estimula a criatividade, promove a formação de sujeitos pesquisadores e forma cidadãos mais conscientes e preparados para os desafios e oportunidades do futuro, seja no campo ou na cidade. É um investimento valioso no desenvolvimento do profissional da educação rural e urbana.